Vi no Portal Sustentabilidade a interessante entrevista com o Arthur do Canal Mamãe Falei, revelando que a grande maioria dos participantes nos protestos de rua contra o impeachment não tinha o conhecimento mínimo necessário sobre fatos políticos que pudessem ser usados para justificar seu ponto de vista. Vê-se nos vídeos youtube do canal, que grande parte dos militantes não consegue contra argumentar ou responder aos questionamentos propostos pelo Arthur, no fim parecendo não saberem porque estavam na manifestação. Não sei que resultado teria um outro entrevistador, tão hábil quanto o Arthur, questionando com argumentos de esquerda os participantes das manifestações “fora Dilma”…
No entanto, uma determinada pergunta feita pelo Arthur em um dos vídeos, e a consequente resposta, chamou-me a atenção:
“Dê-me um exemplo de país onde o socialismo deu certo”, perguntou o Arthur.
“Na Suécia”, respondeu uma senhora manifestante.
“A Suécia não é socialista”, replicou o Arthur, e senhora silenciou.
Tal colocação deriva de uma definição anacrônica seja do capitalismo, seja do socialismo, na qual o capitalismo pressuporia que todos os meios de produção tais como fazendas, indústrias, comércio e serviços, independentemente do segmento, seriam desenvolvidos pela iniciativa privada, enquanto que no socialismo seriam executados pelo estado. Por isso a Suécia não seria socialista, porque até vários serviços públicos lá são contratados com a iniciativa privada.
Acontece que dentro dessa definição clássica, nem os Estados Unidos seriam totalmente capitalistas, nem a China totalmente socialista, e muito menos comunista. Hoje não é mais possível falar em capitalismo ou socialismo como posições absolutas, mas em posições eisnteinianamente relativas. Assim, a Suécia está certamente à esquerda dos Estados Unidos, mas à direita da China, esta última à direita da Coréia do Norte, que é um extremo. Mas os extremos, tanto à direita como à esquerda, são sempre republiquetas de bananas, que espero não interessem a nenhum dos leitores.
O pensamento moderno mais à direita tende a defender a total liberdade de mercado e baixíssima proteção social estatal (“welfare”); cada cidadão cuidaria da sua própria aposentadoria ou seguro médico, os salários sendo determinados pela lei da oferta e da procura. O pensamento mais à esquerda crê numa maior solidariedade social e melhor distribuição da renda, com interferência do estado e maior proteção trabalhista, tudo sustentado por maiores impostos. E realmente, a taxação percentual média da Suécia é praticamente o dobro da estadunidense. Os mais à direita acham que a intervenção do estado desestimula a iniciativa privada, que no fim prejudicaria a todos. Os mais a esquerda acham que a falta de solidariedade condena uma grande parte da população a uma injustiça social permanente, não lhe dando chance para crescer.
Para tentar medir os efeitos desses dois pensamentos contrastantes, podemos usar alguns indicadores econômicos, começando pelo índice Gini, usado pelo Banco Mundial para medir a desigualdade social. Um índice zero indica completa igualdade na renda per capita, e 100 a total desigualdade. A tabela abaixo foi extraída do relatório do World Economic Forum de 2015, e reflete a situação de alguns países desenvolvidos. A extremidade esquerda da barra, para cada país, representa a posição antes da taxação e distribuição de benefícios, e a extremidade direita, após a taxação e distribuição.
Note-se que a posição da Suécia não é muito diferente da estadunidense antes da taxação, mas melhora muito depois.
Mas como é feita essa distribuição de renda? A tabela seguinte, fornecida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra, para vários países, qual percentual do PIB é empregado em despesas sociais, incluindo previdência social, saúde pública, creches e pré-escola até os seis anos de idade, excluindo-se a educação após essa idade, o que de certa forma prejudica a classificação dos países europeus, onde o acesso a universidades públicas de boa qualidade tem custos acessíveis à maioria. Mesmo assim, nota-se que os países europeus, e nórdicos em particular, tem alto nível de proteção social. Nos Estados Unidos, o percentual é abaixo da média OCDE, mas em contrapartida, como já dito, a taxação é baixa.
É preciso, porém, olhar outros indicadores para ver se, e como, o eventual desestímulo à iniciativa privada afeta a economia em geral. Para tanto, usaremos o PIB per capita, corrigido pela paridade do poder de compra, ou seja, com correções devidas às variações no custo de vida dos diversos países, conforme publicado pela CIA para os primeiros 35 maiores valores:
É óbvio que os países exportadores de “commodities” de alto valor tendem a ir para o alto da tabela, mas como já dito, é preciso também levar em consideração como essa renda é distribuída, e em muitos dos países da lista, a média é alta mas a riqueza está nas mãos de poucos.
De fato, vemos que o PIB per capita dos Estados Unidos é 16% maior que o da Suécia. Todavia, é necessário ver se o valor desses 16% adicionais compensa a assistência social que o cidadão médio não recebe, em comparação à Suécia.
Em todos os países do oeste europeu há cobertura médica universal decente. Isso não existe nos Estados Unidos, nem boa, nem ruim. Lá, se você estiver empregado, poderá talvez conseguir uma cobertura através de seu empregador, ou então terá que pagar um seguro do próprio bolso. A consequência é que ao redor de 15% da população legal é totalmente desprotegida, simplesmente porque não tem como pagar um seguro. Esse percentual não considera os imigrados ilegais, o que o elevaria muito.
Na Europa há inclusive um cartão de saúde europeu, válido em qualquer país da união, que pode ser utilizado no caso de um imprevisto médico durante uma viagem. Na mencionada Suécia, além da licença maternidade, existe também a licença paternidade, obrigatória, irrenunciável, igualmente de 6 meses. A razão da obrigatoriedade é que assim não há porque discriminar mulheres por causa da sua inerente probabilidade em usufruir da licença: ambos os genitores têm obrigatoriamente que usufruí-la, e podem alterná-la, por exemplo dois meses cada um, de forma a somarem um ano cuidando alternadamente do recém-nascido. Depois disso, existem creches e pré-escolas até os 6 anos de idade, subsidiadas.
Com relação à proteção trabalhista, o acordo de Saltsjöbaden de 1938 estabeleceu uma forma de contratação coletiva determinando que um trabalhador de determinada profissão ganhe o mesmo em qualquer empresa, com os salários estabelecidos por contratos nacionais que as representações sindicais negociam e assinam com as representações empresariais, sem interferência do governo. Do acordo resultou uma paz social que já dura três quartos de século, pois as greves são proibidas quando há um acordo social. Essa é uma das razões da excelente performance Gini, colocando a Suécia no topo da classificação de distribuição de renda.
Um dos pressupostos do capitalismo é que a meritocracia e liberdade de mercado levam a uma competição que no fim melhora a condição econômica de toda a sociedade. Será mesmo? Hoje, 1% dos estadunidenses detém 40% da riqueza da nação! Vinte e cinco anos atrás, esses mesmos percentuais eram 12% e 33%.
A globalização piorou a distribuição de renda a nível mundial. Thomas Piketty, economista francês, oferece uma explicação do fenômeno no seu livro “O Capital no Século XXI”, esclarecendo que com a globalização acentuou-se o efeito chamado de “capitalismo patrimonial”, que acelera as desigualdades. Segundo Piketty, “as pessoas com riqueza herdada só precisam poupar uma parte do seu rendimento sobre o capital para fazer com que esse capital cresça mais depressa que a economia como um todo”. A conclusão de Piketty é que se o capital tende a ser patrimonial e a gerar uma sociedade de herdeiros extremamente desigual, então o capitalismo tende a ser tudo menos a hipotisada meritocracia, distribuindo rendimentos de uma forma intrinsecamente injusta, movendo o sistema para uma plutocracia, que é materialmente incompatível com a democracia.
Mas há outro fator que influencia significativamente a distribuição de renda. É preciso que os impostos recolhidos cheguem à população em forma de benefícios, ou seja, que não haja corrupção. A tabela abaixo, com dados da agência International Transparency, mostra como é percebida a corrupção nos melhores 35 países, com os mais virtuosos no topo da tabela.Não será por acaso que os países nórdicos estejam novamente no topo da lista. Abrindo parênteses, noto que o Brasil está na 76ª posição nessa classificação.
Rank | Country/territory | 2015 Score | 2014 Score | 2013 Score | 2012 Score |
1 | Denmark | 91 | 92 | 91 | 90 |
2 | Finland | 90 | 89 | 89 | 90 |
3 | Sweden | 89 | 87 | 89 | 88 |
4 | New Zealand | 88 | 91 | 91 | 90 |
5 | Netherlands | 87 | 83 | 83 | 84 |
5 | Norway | 87 | 86 | 86 | 85 |
7 | Switzerland | 86 | 86 | 85 | 86 |
8 | Singapore | 85 | 84 | 86 | 87 |
9 | Canada | 83 | 81 | 81 | 84 |
10 | Germany | 81 | 79 | 78 | 79 |
10 | Luxembourg | 81 | 82 | 80 | 80 |
10 | United Kingdom | 81 | 78 | 76 | 74 |
13 | Australia | 79 | 80 | 81 | 85 |
13 | Iceland | 79 | 79 | 78 | 82 |
15 | Belgium | 77 | 76 | 75 | 75 |
16 | Austria | 76 | 72 | 69 | 69 |
16 | United States | 76 | 74 | 73 | 73 |
18 | Hong Kong | 75 | 74 | 75 | 77 |
18 | Ireland | 75 | 74 | 72 | 69 |
18 | Japan | 75 | 76 | 74 | 74 |
21 | Uruguay | 74 | 73 | 73 | 72 |
22 | Qatar | 71 | 69 | 68 | 68 |
23 | Chile | 70 | 73 | 71 | 72 |
23 | Estonia | 70 | 69 | 68 | 64 |
23 | France | 70 | 69 | 71 | 71 |
23 | United Arab Emirates | 70 | 70 | 69 | 68 |
27 | Bhutan | 65 | 65 | 63 | 63 |
28 | Botswana | 63 | 63 | 64 | 65 |
28 | Portugal | 63 | 63 | 62 | 63 |
30 | Poland | 62 | 61 | 60 | 58 |
30 | Taiwan | 62 | 61 | 61 | 61 |
32 | Cyprus | 61 | 63 | 63 | 66 |
32 | Israel | 61 | 60 | 61 | 60 |
32 | Lithuania | 61 | 58 | 57 | 54 |
35 | Slovenia | 60 | 58 | 57 | 61 |
Um último tema normalmente associado ao capitalismo, é a “liberdade”. Liberdade não é apenas poder escolher, votar, entrar, sair. A completa liberdade exige a capacidade de poder identificar as alternativas em jogo, de poder enxergar universalmente aquelas disponíveis à escolha, e não apenas fazer shows de rock que a cantem. Um povo condicionado a só conseguir enxergar o próprio umbigo e a se contentar com isso, não pode ser dito livre. São como os habitantes descritos no livro Flatland, de Edwin A. Abbott, que vivem num mundo de duas dimensões e não podem enxergar um terceira, que porém existe. E aqui mais uma vez os nórdicos dão uma lição ao mundo com seu maciço investimento em educação e cultura, tornando assim seus cidadãos conscientemente mais livres se comparados a outras realidades, tanto à sua direita como à sua esquerda.
De todo o exposto, se a senhora que respondeu ao Mamãe Falei citando a Suécia como exemplo de socialismo estiver errada, certamente erra muito mais quem concluir que a Suécia é capitalista, lembrando ainda que os próprios suecos chamam seu sistema político de “socialismo democrático”.
Cada vez menos a população estará interessada em saber se os seus benefícios serão conduzidos pelo estado ou contratados com a iniciativa privada, ou com discussões acadêmicas sobre socialismo e capitalismo, sobre a vida sexual dos políticos ou sobre posições politicamente corretas; estará sim interessada em honestidade, transparência, trabalhar, divertir-se, segurança, comer, vestir-se, estudar, viajar…viver.
Imagem: Armenio Machado (Youtube)
Texto: Giovanni Mangraviti, graduado em engenharia mecânica pela Escola de Engenharia Mauá, Consultor de Supply Chain residente em Bologna(IT) com destacada atuação na Caterpillar Logistics Services