Há diversos fenômenos que nos chamam a atenção na cultura brasileira. Este que descreveremos a seguir, particularmente dadas as circunstâncias em que ocorre, é provavelmente de surgimento bastante recente. Na falta de outro tipo de informação, supomos que tenha aparecido junto com a popularização dos meio de comunicação de massa, principalmente o rádio e a televisão.
O caso que aqui nos chama a atenção é a maneira peculiar com que usualmente repórteres, apresentadores de noticiários e mesmo pessoas comuns envolvidas, fazem uso de substantivos, que parecem – ou premeditadamente são usados para – esconder as causas e os responsáveis por certos acontecimentos.
Inicialmente procuraremos dar exemplos fictícios de situações nas quais isso ocorre, para em seguida fazermos nossas considerações.
Fato 1: O apresentador descreve um atropelamento ocorrido durante a madrugada. Duas pessoas morreram e o motorista, bêbado, tenta fugir do local, mas é preso. O repórter, já na manhã do dia seguinte, entrevista parentes das vítimas durante o enterro. A imagem volta para o apresentador que descreve o ocorrido como uma “fatalidade” e que agora se espera uma ação da “justiça”. Uma parente da vítima também fala em justiça, mas na “justiça de Deus”.
Fato 2: Em importante cidade brasileira, mais uma vez, ocorre a morte de uma criança, causada por bala perdida. “A tragédia desta família que comove a todos”, diz o repórter presente ao hospital. A apresentadora do telejornal usa os substantivos “tragédia”, “perda”, “drama” e “justiça” com bastante ênfase.
Fato 3: Incêndio destrói parte de uma favela. “Acidente”, “irresponsabilidade”, “autoridades”, são palavras que integram grande parte das manchetes e comentários dos telejornais.
Fato 4: Uma barragem se rompe e inunda uma pequena cidade, matando doze pessoas e destruindo dezenas de quilômetros quadrados de área agrícola e florestal, além de soterrar parte da cidade com resíduos. “Tragédia”, “Fatalidade”.
Fato 5: Um importante museu, localizado em importante cidade, abrigando importante acervo, pega fogo, sendo destruído em grande parte. Mesmos comentários, idem, idem.
O uso dos substantivos (precedidos ou seguidos de adjetivos) é o mesmo quando se trata de descrever outros acidentes, que causaram danos a pessoas ou ao patrimônio, envolvendo grandes empresas, órgãos do governo, personalidades, etc. A impressão que se tem ao assistir a tais coberturas jornalísticas – geralmente televisivas – é que o ocorrido foi um “acidente” ou “uma tragédia”, ou pior, “uma fatalidade”, que não puderam ser evitados. As reais causas não são analisadas e informações são (premeditadamente) omitidas e aqueles que poderiam – ou deveriam – evitar o acontecido, muitas vezes não são sequer mencionados.
Provavelmente a ideia que se quer transmitir ao público é que tudo foi uma “fatalidade”, um grande “acidente”, o que causou a “tragédia”. Os causadores ou culpados ficam cobertos por uma cortina de fumaça. A informação superficial, não analisa o fato em profundidade e não aponta os responsáveis que poderiam ter evitado o ocorrido – a polícia, o departamento de trânsito, serviços sociais, empresas envolvidas, órgãos fiscalizadores, técnicos responsáveis, a justiça, altos executivos de empresas, juízes, etc.
As origens de tal procedimento provavelmente encontram-se no período ditatorial, quando notícias “negativas”, que pudessem causar comoção social, não eram tratadas em detalhes, quando muito veiculadas. Esta forma de cobrir jornalisticamente os fatos, sem apontar-lhes as causas, os prováveis causadores, seja por ação ou omissão, propicia um clima de impunidade e não permite que a sociedade possa aprender com tais acidentes e implantar práticos que possam evita-los no futuro.
Diferente de outras culturas que procuram tratar tais fatos de maneira científica, identificando causas, fatores relevantes e culpados a fim de prevenir novas ocorrências, tais acontecimentos ainda são abordados quase como se fossem acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais – o que muito interessa e beneficia os reais responsáveis por tais ocorrências.
Ainda é grande a diferença entre o jornalismo televisivo praticado por muitos veículos no Brasil e o que ocorre em outros lugares, principalmente a Europa. Lembro-me de ter visto a ação de um repórter do jornal Guardian, preparando uma matéria para inserção televisiva. Sua entrevista seria com um dos grandes executivos da Shell. A maneira como o jornalista colocava suas perguntas, fazia lembrar uma luta de box, na qual o executivo estava encurralado no canto do ringue. Enquanto isso, aqui no Brasil, entrevistas semelhantes são conduzidas com tudo cuidado, de maneira a não colocar o entrevistado em má situação.
Texto: Ricardo Ernesto Rose
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