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Água e os próximos 50 anos – Gestão de Recursos Hídricos

Recursos Hídricos

A água é um elemento relativamente abundante no universo. Análises da luz de todos os quadrantes do espaço feitas por espectroscópios, mostram que no espaço interestrelar e nas diversas galáxias a água está presente, principalmente na forma de gelo. Na Terra, o líquido já é identificado no início da formação do planeta, mas sua origem ainda é tema de discussões entre os cientistas. A teoria mais aceita até o momento diz que a maciça precipitação de cometas, formados basicamente por gelo e poeira, incorporou grande quantidade de água à Terra. Esta água, trazida do espaço, juntou-se àquela já existente desde a formação, e nas condições climáticas e geológicas do jovem planeta deu início ao ciclo hidrológico.

O volume de água existente na Terra não sofreu nenhuma variação ao longo dos últimos 4,5 bilhões anos. A água não se perde. A maior ou menor disponibilidade do líquido varia de um lugar para o outro, dependendo de fatores geológicos e climáticos. A movimentação das placas tectônicas provoca a formação de novos continentes, a abertura de mares, o soerguimento de cadeia de montanhas, o surgimento de rios e outros acidentes geográficos. Estes acidentes geográficos podem mudar o clima e, consequentemente, a disponibilidade de água em certas regiões. O interior do Brasil, quando a América do Sul ainda não era separada da África há cerca de 250 milhões de anos, era um grande deserto, que se estendia por centenas de quilômetros. A região do Saara foi coberta de lagos e estepes há cerca de 10 mil anos; uma paisagem bem diferente da aridez atual. Em ambos os casos, as condições geológicas e climáticas fizeram com que a água se tornasse mais disponível (a chuva que começou a vir do oceano Atlântico quando este se abriu há cerca de 170 milhões de anos) ou mais escassa (a mudança no eixo da Terra há cerca de 10 mil anos fez com que a região do Saara recebesse uma insolação maior). Portanto, a água que existe no planeta não se perde; ela apenas muda de concentração nas diversas regiões.

Os primeiros assentamentos humanos do Neolítico (10.000-3.000 AEC) foram à beira de lagos e rios, locais onde a água, a pesca e a caça eram abundantes. Mais tarde, com a invenção da agricultura, as aldeias se estabeleceram ao longo de rios caudalosos, onde a água para a irrigação era abundante. As primeiras cidades-estados do Oriente Médio, sempre foram altamente dependentes das cheias dos rios Tigris e Eufrates, assim como o império egípcio também dependia do regime das águas no Nilo. O mesmo vale para as cidades do vale do rio Indo e as primeiras cidades da China, no vale dos rios Yangtze e Huang He (Amarelo).

De uma maneira geral, as condições de potabilidade da água, desde a Antiguidade até meados do século XIX sempre foram insuficientes, considerando os padrões estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde nos anos 1950. Mas, algumas civilizações perceberam o nexo existente entre a água poluída e o aparecimento de doenças. Assim na China, ainda no período Neolítico, há sete mil anos, se empregavam técnicas de escavação de poços profundos, a fim de acessar água (visualmente) mais limpa. Sistemas de canalização de água já eram utilizados regularmente nas principais cidades chinesas durante a dinastia Han, em 250 AEC. Ainda na Ásia, as cidades de Harappa, Mohenjo Daro e Rakhigarhi, florescendo no vale do rio Indo no século XXV AEC (ainda na Idade do Bronze), já dispunham de sistemas de suprimento de água e coleta de efluentes, formados por canaletas.

Na Babilônia, algumas cidades-estados como Nippur e Eshnunna, dispunham de sistemas de tubulações de cerâmica, para fornecimento de água e coleta dos esgotos. Os mais antigos exemplos destas estruturas foram encontrados nos templos de Baal, locais de grande acúmulo de fiéis durante as festas religiosas.

No Ocidente a civilização minoica, que floresceu na ilha de Creta entre 2.600 e 1.100 AEC, detinha avançados sistemas de saneamento. A capital do império, a cidade de Cnossos, foi a primeira a dispor de um sistema de tubulações subterrâneas para suprir água limpa e carregar os dejetos para fora da cidade. As casas dos bairros mais ricos da cidade, já no século XVIII AEC, dispunham de toaletes com sistemas de água corrente e aquecida, para os banhos. Os gregos de Atenas, assim como as colônias jônicas da Ásia Menor (atual Turquia) igualmente dispunham de redes de tubulações, que coletavam os efluentes das residências e os carregavam para fora das cidades.

O sistema mais avançado de suprimento de água e coleta de esgotos foi o da cidade de Roma, estrutura que os próprios romanos batizaram de “Cloaca Maxima”. Através desta estrutura os esgotos da cidade eram carreados e descarregados nas águas do rio Tibre. Os sistemas de distribuição de água eram bastante sofisticados, trazendo o líquido através de aquedutos de locais distantes até 150 quilômetros. Na cidade, a água era distribuída através de tubulações de barro e chumbo, que abasteciam residências, termas, fontes e poços públicos.

Quase todas as civilizações mais avançadas da Antiguidade, de uma maneira ou outra, começaram a se preocupar com a qualidade da água que consumiam. Se, por um lado, não existia o conhecimento de que o líquido era povoado por microrganismos patogênicos, por outro havia a experiência de que a água suja e com odor causava doenças, principalmente em crianças. Métodos de melhoria do gosto e do odor da água, destinada ao consumo humano, datam de antes de 4.000 AEC. Os escritos mais antigos tratando deste assunto foram achados em tumbas egípcias e em escritos da antiga Índia. Lá, um texto médico denominado Sus´ruta Samita, datado de 2.000 AEC, fornece instruções sobre como preparar a água para consumo. As técnicas incluem a fervura, o aquecimento da água pela luz solar, a imersão de ferro quente no líquido, processos de filtragem com gravetos e areia, e adição de certas sementes ou pedras à água. Nas paredes dos túmulos de Amenophis II e Ramses II, faraós do 15º e 13º séculos AEC, respectivamente, encontram-se desenhos de equipamentos para limpeza da água.

Vale lembrar que as diversas civilizações – chinesa, indiana, babilônica, egípcia, grega e romana – utilizavam os resíduos sanitários como adubo, depois de um processo de compostagem, no qual eram acrescentados restos de vegetação e materiais orgânicos à mistura. Ainda hoje, no interior da China e na Índia, agricultores utilizam estes resíduos na agricultura.

Durante a Idade Média não houve grande avanços na distribuição de água e coleta dos efluentes. A maior parte das cidades buscava sua água em nascentes próximas, que então era distribuída através de fontes e poços públicos. O contato com os efluentes, que muitas vezes eram depositados nas imediações da cidade, poluindo rios e o lençol freático, podia provocar o surgimento de epidemias, relativamente comuns nos maiores aglomerados urbanos durante toda a Baixa Idade Média até o Renascimento quando, de uma maneira geral, a população urbana da Europa começou a crescer.

Os primeiros tubos de ferro fundido para escoamento de água e efluentes foram utilizados na França em 1664. Sua primeira instalação ocorreu no palácio de Versailles, durante o reinado de Luís XIV. Com relação à melhoria da qualidade da água, o processo de filtragem tornou-se relativamente comum a partir do século XVIII, principalmente na França, propiciando assim o aparecimento das primeiras empresas de fornecimento de água a domicílio. Ao longo dos anos, a prática foi estendida ao resto das grandes cidades da Europa.

A captação, preparação e distribuição de água nos moldes parecidos aos atuais tornou-se mais comum no século XIX, aliando as novas descobertas na área da medicina – entre outras a descoberta do vibrião da cólera por Koch e os conceitos da microbiologia desenvolvidos por Pasteur –, disseminando-se pelos mais importantes centros europeus e norte-americanos. Em 1829 a França passou a criar diversas leis relacionadas à qualidade da água, que previam multas e prisão para aqueles que poluíssem as águas, provocando a morte de peixes – era este o principal indicador. A Inglaterra, às voltas com a industrialização e o inchaço das cidades, aprovou diversos marcos legais que proibiam as fábricas de lançarem seus efluentes nos cursos de água. À mesma época, os cientistas ingleses John Snow e Edwin Chadwick descobriram o nexo entre as água poluídas e as diversas doenças que assolavam as populações urbanas – entre elas a cólera que ceifou mais de 180 mil vidas na Europa. Ao longo da segunda metade do século XIX as maiores cidade da Europa passaram a construir sistemas de tratamento de água e esgoto, o que gradualmente ajudou a reduzir a incidência de doenças infecciosas transmitidas pela água poluída. Mas, foi somente no início do século XX que os serviços de tratamento de água se popularizaram – pelo menos entre os países mais desenvolvidos à época.

No mundo, atualmente, a situação da disponibilidade de água potável tornou-se pior do que no passado. Apesar de existirem tecnologias capazes de suprir com água de qualidade todas as regiões do planeta, os problemas agora são mais amplos. O aumento da população mundial, o uso maciço da água pela agricultura, os processos industriais e o consumo doméstico, fizeram com que líquido se tornasse escasso em diversas regiões do planeta. Segundo dados recentemente publicados pelo jornal Valor, vivem hoje cerca de 1,7 bilhão de pessoas em regiões onde a necessidade de água ultrapassa sua disponibilidade. Até o ano de 2050 este número de pessoas deverá subir para 2,3 bilhões, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ainda segundo a reportagem do jornal, o volume de água retirado da natureza é atualmente três vezes maior do que há 50 anos, e deverá aumentar em mais 55% nas próximas três décadas. Assim, para garantir a segurança hídrica, o mundo precisará investir US$ 650 bilhões por ano até 2030, segundo o presidente do Conselho Mundial da Água, Benedito Braga. Todavia, as nações que precisarão fazer os maiores investimentos nesta área, são exatamente aquelas que menos recursos dispõem.

Dentre as ações necessárias para economizar os recursos hídricos incluem-se a reutilização de efluentes industriais e domésticos, a redução das perdas de água através de vazamentos na tubulação, a diminuição do desperdício, a introdução de processos industriais e tecnologias que utilizam menos água, a substituição que façam uso intensivo de água, o reflorestamento e a recomposição de matas ciliares, a proteção dos mananciais possibilitando mais geração de água, entre outras providências. Mais importante ainda, segundo o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento (CEBDS), é conferir valor econômico à água, ou seja, fazer com que todos os que consomem o recurso – agricultura, indústria, administrações públicas, companhias de saneamento e consumidores finais – paguem pelo real custo da obtenção, preparação e distribuição do líquido. A água não pode mais ser um recurso gratuito, já que está se tornando cada vez mais caro e escasso.

Em relação à disponibilidade de água, o Brasil encontra-se em uma situação privilegiada, já que dispõe de cerca de 12% dos recursos aquíferos mundiais. Internamente, porém, a disponibilidade do líquido é diferenciada. Cerca de 81% da água encontra-se na Região Norte, onde vivem apenas 5% da população do país. A Região Sudeste, por exemplo, que gera quase metade da PIB brasileiro e acomoda 45% da população, dispõe de apenas 3% dos recursos hídricos. Outras regiões brasileiras também sofrem com estiagens sazonais, afetando atividades econômicas e a geração de eletricidade. A região mais afetada pela seca é o Nordeste, onde nos últimos anos a estiagem foi mais acentuada. Por outro lado os atrasos nas obras públicas, a falta de planejamento nos projetos, a malversação de recursos, são alguns dos fatores que tornam a situação desta região ainda mais grave.

No Brasil, até o início do século XIX, as ações de gestão dos recursos hídricos limitaram-se à construção de pequenas redes de captação de água e à abertura de poços e instalação de fontes de uso comum. Grande parte das populações urbanas, ainda pouco numerosas, abastecia-se da água dos rios – na época ainda pouco poluída – e dos poços particulares. As primeiras estações de captação e tratamento de água surgiram no final do século XIX e início do século XX, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Por volta de 1930 todas as capitais brasileiras possuíam sistemas de tratamento de água – mesmo que nem sempre atendendo a toda a população, forneciam água tratada para as regiões centrais e bairros mais antigos. A partir da década de 1940, com o aumento do êxodo rural e o crescimento da demanda por saneamento, surgem as primeiras empresas públicas e autarquias de serviços de tratamento da água.

O setor de saneamento – especificamente o tratamento de água – teve um grande impulso a partir do início da década de 1970, com a implantação do Plano Nacional de Saneamento – Planasa. O projeto criou as companhias estaduais de saneamento, obrigou os estados a investirem no setor e estabeleceu linhas de crédito com base em recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Apesar deste impulso inicial, a década de 1980 foi de relativa estagnação, dado o alto endividamento do Estado e as elevadas taxas de inflação. A retomada dos investimentos e a ampliação da infraestrutura do setor só ocorreram a partir da estabilização da economia em 1994 e o aumento das verbas para o setor, com a criação do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007. Em 2012 o Ministério das Cidades cria o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que previa à época investimentos de R$ 270 bilhões até 2030. No entanto, depois do início da crise que afeta a economia brasileira desde 2013, os investimentos em obras de infraestrutura diminuíram e as perspectivas para o setor são incertas para os próximos anos.

A água se tornará recurso natural estratégico nos próximos cinquenta anos. Sua escassez limita as atividades em outras áreas; como a geração de energia, a agricultura, o abastecimento da população, as atividades industriais e outros setores dependentes do uso do recurso. Para países com pouca extensão territorial e pouca disponibilidade de água, sua escassez poderá significar um grande obstáculo para o progresso material e social destas nações. Com isso, a falta da água deverá provocar conflitos de menor ou maior gravidade no interior dos países e entre nações. Em muitas regiões do globo isto já começa a acontecer, provocando guerras civis e acirrando conflitos fronteiriços.

A crise hídrica, se ocorrer, afetará principalmente as nações pobres, muitas delas com grandes populações e dependendo fortemente de suas agriculturas. Alguns destes países, já atualmente, não conseguem mais produzir alimentos suficientes para abastecer sua população, como o caso do Egito, do Afeganistão e da Somália. Assim, acumularão mais outro problema; o da falta de água. Neste quadro, é preciso lembrar que a história nos mostra que grandes civilizações do passado entraram em decadência por falta de água. Dependendo das condições tais fatos poderão se repetir; mas atualmente terão consequências globais.

Texto: Ricardo E. Rose
contato@sustentahabilidade.com.br

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Escrito por Ricardo Rose

Ricardo Ernesto Rose, jornalista, graduado em filosofia e pós-graduado em gestão ambiental e sociologia. Desde 1992 atua nos setores de meio ambiente e energia na área de marketing de tecnologias.

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